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Sobre o suicídio

Um chefe de família, aparentemente arruinado, mata a mulher e as duas filhas e se suicida. Um óbvio gesto de loucura e loucura não se comenta, se lamenta. Mas as pessoas se metem a opinar até sobre o inopinável, então quero comentar não o fato – por respeito à loucura e suas vítimas – mas os comentários sobre o fato.
Um psiquiatra diz que foi um “crime piedoso”, um psicanalista chama de “crime altruísta”. Piedade e altruísmo são atributos desejáveis para todas as religiões. Afirmam estes especialistas em almas que não foi um crime movido por ódio, evidentemente, e que talvez o intuito fosse poupar-se e poupar a família da nova condição de pobres. Da humilhação, do ônibus, do subúrbio, da escola pública, da sardinha em lata, do dente cariado… é longo o séquito de indesejados que acompanha a pobreza e a função de psiquiatras e psicanalistas é compreender o homem.
Saint-Exupéry – esse mesmo, o do Pequeno Príncipe – escreveu um livro chamado Terra dos Homens.
Da geração das “misses”, todo mundo leu o Pequeno Príncipe; parece que até elas. Como as gerações seguintes leram O Apanhador no Campo de Centeio, Fernão Capelo Gaivota e Porcos com Asas. Vai ver que cada época tem um livro emblemático para os jovens e este livro acaba formando alguns valores comuns à geração. As misses envelheceram porém lembram até hoje que a gente “se torna eternamente responsável por aquilo que cativa”.
Mas Saint-Exupéry também escreveu Terra dos Homens, que nem todo mundo leu. Neste livro ele fala sobre os correios aéreos que faziam com aviões pioneiros a rota Europa-África-América do Sul em longos vôos solitários sobre o deserto, o Atlântico e os Andes. Saint-Ex, como os amigos o chamavam, foi piloto nesta rota perigosa e morreu quando seu avião se espatifou contra uma montanha.
Ele nos conta que conheceu um suicida moço. E não sabe a que tentação literária este jovem cedeu, quando calçou luvas brancas antes de puxar o gatilho e se matar de amor por outra jovenzinha talvez tão tola quanto ele. Lembra então de Guillaumet, seu companheiro no Correio Sul.
O avião de Guillaumet sofreu uma pane e caiu nos Andes. Machucado, cheio de dores e atordoado, percebendo a imensidão deserta à sua volta, ele compreendeu que estava perdido. Seu primeiro impulso foi deitar e se deixar adormecer, a “morte branca” é indolor. Mas lembrou dos companheiros. Os companheiros iam procurar por ele, voando baixo nas montanhas traiçoeiras até encontra-lo. Lembrou da mulher, dos filhos e de detalhes banais, seu seguro só seria pago se o corpo fosse localizado e a neve esconde para sempre, em poucas horas, o corpo de um homem.
Então, Guillaumet andou. Andou sem rumo dois dias e duas noites, parando apenas para rasgar uma bota, quando a perna inchada já não cabia nela, ou esfregar neve nos olhos para mantê-los abertos. A cada parada ficava mais pobre, esquecia uma luva ou um canivete, mas os amigos acreditavam que, se estivesse vivo, ele estaria caminhando e ele caminhou, dando tempo para que os companheiros o achassem. Estava de pé, quando o encontraram.
– O que eu fiz – disse com brio ingênuo, em meio aos abraços e à felicidade dos amigos – nenhum animal faria.
E Saint-Ex conclui, tentando definir o atributo que distingue a “humanidade” em cada um de nós: “Ser homem é, precisamente, ser responsável. É experimentar vergonha diante de uma miséria que não parece depender de si. É ter orgulho da vitória de um companheiro. É sentir, colocando a sua pedra, que contribui para construir o mundo”.
Este livro foi lido naquela idade em que se grava tudo, não só as palavras como a localização das palavras na página. Naquela idade em que não se tem nem idade para ser candidata à miss e Saint-Exupéry não é considerado um clássico. Foi um livro perdido ou emprestado, que nunca mais voltou para a estante e é citado de memória. Lembrei dele hoje, a propósito dos que acham que têm que achar alguma coisa, têm espaço para dizer o que acham e certamente influenciam jovens que os lêem.

One Response to “Sobre o suicídio”

  1. dalva says:

    http://www.poesiasecasos.blogspot.com também, que eu cometo verso e prosa.
    Eu li Terra dos Homens. Inclusive estive lá em San Rafael, na província de Mendoza, e fiquei horas olhando o céu e pensando na grandeza daqueles homens. Como faço quando subo a Serra do Mar, ali em Cubatão: fico pensando na grandeza dos portugueses que chegaram e viram aquele mundão e se atreveram a subir aqui para São Paulo (feliz ou infelizmente). Li o Apanhador também, e faço minhas as palavras do Holden Caufield que disse que, quando lia um bom livro, tinha vontade de ligar para o autor. Qual o teu telefone mesmo?

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