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Sempre aos domingos

Por Maria Helena Nóvoa (mariahelena@epinion.com.br)
Não há noite mais chata do que a noite de domingo.
Conheci um maluco que gostava: dizia que na segunda-feira o mundo voltava a ter ordem e a possibilidade da ordem no dia seguinte já lhe tornava a noite de domingo prazerosa. Como todos nós, o doido vivia muito mais no amanhã do que no momento presente. Domingo ainda é dia de caos mas a sombra ordenada da segunda-feira paira sobre ele, contaminando as últimas horas de liberdade e chatificando-as de maneira irreversível – o Fantástico só se mantém há tantos anos porque vai ao ar nas noites de domingo.
Então, aos domingos, até os filhos chegam cedo, passamos a tranca nas portas, acertamos o despertador, fazemos um lanchinho chumbrega – sábado é que é dia de altas comilanças – e nada mais pode acontecer além de bocejos.
O barulho da moto acelerada ao máximo foi ouvido pela rua inteira, a rua é pequena, a freada, a derrapada, sons confusos de metais lógicos funcionando a toda, sons absurdos de metais se torcendo de maneira ilógica, depois o silêncio. O silêncio é que dá medo. O que quer que tenha acontecido, acabou, ninguém mais se move e o silêncio é total, não há gritos. Não conheço ninguém que corra no silêncio, no silêncio nos movemos devagar e foi devagar que todos chegamos às janelas: a dois metros da porta da minha garagem, o corpo do garoto, a moto espatifada no poste logo abaixo.
O primeiro momento do inusitado é histérico: para quem é mãe qualquer jovem tem um pouco do seu filho, é esquisito mas é verdade, sempre torço para o acidentado ser mais velho mas não era e o primeiro momento é o choro, meu deus, é um garoto, a perna fica bamba, dá vontade de tampar os olhos e deitar, dá vontade de tampar os ouvidos também porque daqui a pouco o garoto pode começar a gritar muito. O segundo momento é prático, temos obrigação de fazer alguma coisa e aí começam os automatismos, na prática somos todos automáticos, o garoto não se mexia e podia estar morrendo, precisava de orações, todas as religiões têm ritos fúnebres, precisava de alguém que lhe desse a mão e falasse com ele, mas somos todos robôs da catástrofe e todos pensamos ao mesmo tempo: qual o telefone dos bombeiros?
Os bombeiros são o nosso lado prático, são aqueles que sabem o que fazer quando não sabemos: chamar os bombeiros significa vou fazer só o que sei, o que está impresso no meu sistema robotizado. Ligar para os bombeiros era fazer o que todos já estavam fazendo. Lembrei do Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, foi o que lembrei, alguém está morrendo e pode sussurrar um último pedido, é importante um ouvido colado à boca de quem morre, mas sou automática, como todo mundo, meu primeiro grito foi meu deus, qual o telefone dos bombeiros? Pedindo socorro ficaria desobrigada da mão fria do garoto, da gravidade suprema de qualquer palavra percebida, de receber na cara o grito que não vinha. Melhor chamar os bombeiros e me aproximar depois, assim ganho tempo, à espera do milagre.
É claro que todos sabemos para onde ligar em caso de emergência, polícia, bombeiros, Miguel Couto, hospital referência para quem mora na Zona Sul do Rio. É claro que, no sufoco, não lembramos de qualquer dos números. Aí começaram os gritos, na minha casa, em todas as casas, o catálogo, onde está o catálogo?
Catálogos, hoje, são muitos e, porque são muitos, deixaram de ser “o” catálogo, são páginas amarelas, lista de assinantes, lista de endereços, onde estão os catálogos. Onde estão os catálogos? Não sei mais onde estão os raios dos catálogos da minha casa, os telefones importantes estão no computador, os vizinhos chegam, vêm em silêncio, quase todos com telefones, estavam vendo o Fantástico mas foram convidados para o show da vida ao vivo, a cores também, o garoto sangra pelo ouvido e não se mexe, ninguém lembra o número dos bombeiros? Ninguém lembra. Acho que um dia eu soube de cor, tenho quase certeza, naquele dia em que descobri um enxame de africanas no forro da casa, falei várias vezes com os bombeiros, não consultava o catálogo a cada vez que ligava, quem sabe, peloamordedeus o número dos bombeiros? Bateu um branco no mundo.
Lembrei do 102, telefonista de auxílio, 10 segundos e o número dos bombeiros, e se o garoto morresse sozinho, em frente à minha casa, sem mãe e sem mão para segurar?
Primeiro as coisas primeiras, primeiro os bombeiros, depois desço e rezo a oração das mães perto do garoto, seguro a sua mão e faço uma barganha com Deus, sabe, todos aqueles pedidos idiotas dos últimos tempos? Tudo que não vale nada? Troco tudo pelo garoto, afinal, só o que importa é a vida, o resto a gente dá um jeito, o Fantástico termina assim, todos os vizinhos discam seus telefones e agora tenho certeza de que eu sou um robô.
– Telemar, Marina, boa noite.
– Marina, é uma emergência. Telefone dos Bombeiros da Gávea.
Silêncio… a Marina não informa, digita.
– Marina, bombeiros! Pode ser a Central, Marina…
Mas a Marina não está mais na linha.
– Após ouvir a solicitação desejada, tecle 4 para novas ligações.
– Marina, fala comigo, tem um garoto morrendo aqui na porta.
– Telemar 31 agradece a sua ligação. 31, o DDD deste Brasil.
– MARINA, PORRA!
– O telefone solicitado é:
– Zero
– Oito
– Zero
– Zero
Marina é de última geração, é a máquina criada pela máquina, Marina é de última, não tem útero, tem nariz entupido e voz de telefonista, vai morrer sem filhos e está me dando um 0800, quem consegue gravar um 0800 numa hora dessas?
– 193 – alguém da casa diz.
– 193, faz sentido. 0800 qualquer coisa é que não faz.
Desliga-se a Marina – Marina, eu quero que você morra – disca-se 193, enquanto isso se desce dois lances de escadas porque o garoto está na rua, estirado e não se mexe, o capacete está caído ao lado da moto esbagaçada, o braço do garoto passa por cima da cabeça e está torcido numa posição inacreditável, o capacete devia estar no braço, uma, duas, três chamadas:
– Corpo de Bombeiros.
Estes são humanos e não robôs. Não pediram telefone para confirmar, não imaginaram um trote. Só repetiram a rua e o número. OK? OK.
Estamos todos na rua, em pé ou ajoelhados ao lado do garoto. Ele permanece na posição em que caiu e o sangue do ouvido começa a empoçar.
Alguém, também craque em reações automáticas, já preveniu – Ninguém toca! -, não tocamos nele. Olhamos de longe, rezamos de longe. Eu penso na mãe, minhas filhas se comovem quando chega a namorada, ele havia deixado a namorada há alguns minutos, é a namorada que mora na rua e a namorada chega chorando.
– Avisaram à mãe? – pergunto à namorada.
A mãe tocaria nele, mãe tem autoridade para quebrar as regras, abraçaria e pegaria na mão dele, moleque tão pequeno, não devia ter 18 anos, uma moto tão grande, uma acelerada sem tamanho, nossos carros são carroças, o presidente disse, vai ver que nossas motos também são, mas filhos só deviam andar a pé ou de carroça, filhos são frágeis, saem pelo mundo com uma armadura de pele, mas o barulho quando a pele rompe…o barulho… o barulho vai custar a sair da memória.
Eles vieram sem burocracia. Vieram de luvas e sirene e o garoto foi levado, sem mãe e sem se mexer, deixando aquele sangue gosmento na calçada. E cada um de nós, com telefone na mão, voltou para sua noite de domingo.
Em que nada acontece. Em que só o Pedro Bial e a Glória Maria riem, com seus risos de muitos dentes, enquanto a musiquinha do Fantástico irrita.
É fantástico o show da vida.

One Response to “Sempre aos domingos”

  1. dalva says:

    Ai que triste é a realidade!

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