Feed on
Posts
Comments

E La Nave Va

O navio britânico Aurora saiu de Southampton, em 20 de Outubro, para um cruzeiro pelas Ilhas Gregas. Seus 1.800 passageiros pagaram entre US$ 1.500 e US$ 9.000 pelo simpático programa.
Uma virose do aparelho digestivo, altamente contagiosa, afetou mais de 500 passageiros, parte da tripulação, e as autoridades de Atenas, Dubrovnik e Veneza negaram autorização para o desembarque dos intoxicados.
O vírus não é grave mas causa vômitos e diarréia – quando uns se recuperam, outros caem contaminados. Sem porto que a receba, a nave segue de volta para casa.
Todos os navios de turismo se parecem e todos os cruzeiros são o mesmo cruzeiro. Seja nas Ilha Gregas ou descendo o Nilo, dentro de um navio você está em Miami.
Há uma conspiração internacional para tornar todas as viagens iguais, com o mesmo gosto, a mesma música, o mesmo cheiro.
Profissionais do entretenimento estão sempre tentando inserir alguém em gincanas, ginásticas, danças, sorteios, corridas de saco e vamos-ver-quem-consegue-botar-o-rabo-no-burro. Todo cruzeiro é deprimente.
Antes do ansiado fim, rola um baile à fantasia. Se você não quer se vestir de Minnie e prefere olhar o mar, perguntam se está deprimida e é proibida a depressão a bordo. O buffet é um quadro naïf, não há penumbra nem meios-tons, a moldura das travessas não combina com o que está dentro e é tudo agressivamente colorido: cascatas de camarão, peixes inteiros, perus laqueados invariavelmente enfeitados com cereja e muita maionese – dá nojo ao final de dois dias -, deve ter sido a maionese, a vilã sempre é a maionese, e qualquer programa de classe-média acaba na Disney com muita maionese.
Mas as águas pertencem a Netuno – principalmente as do Egeu – e Netuno talvez tenha horror a Mickey e Minnie.
Na partição dos três mundos, couberam a Júpiter o Céu e a Terra, a Plutão os Infernos e a Netuno as Águas.
O reino da águas é o abismo misterioso de onde a matéria emerge e a letra Mem é a raiz cabalística de Mãe e de Mar – as Águas são berço e túmulo e suas leis são diferentes das leis da terra, do céu e do inferno.
Qualquer barco é território de ficção porque o que bóia nas águas não pertence mais ao mundo ordenado e lógico da realidade – Netuno é o deus das profundezas onde tudo é ambíguo, onde as formas se dissolvem, as cores se fundem, onde a loucura é possível e a loucura interessa muito mais ao artista do que a lucidez previsível. As histórias loucas nos remetem ao mundo de Netuno.
O Holandês Voador era um navio condenado a vagar por toda a eternidade com uma tripulação fantasma – foi lenda, antes de ser ópera de Wagner.
Ulisses demorou dez anos na viagem de volta à Ítaca, seus caminhos deixaram de ser os duros e coerentes campos de Tróia e se confundiram numa jornada fantástica de sereias, monstros, feiticeiras que transformavam homens em porcos e legiões de afogados.
O Pequod navegou 40 anos conduzido pela obsessão de Ahab a perseguir pelos mares Moby Dick, a baleia branca que levara sua perna, e só sobrou Ismael para contar.
Tudo que é misterioso e perigoso é banido para o reino de Netuno – o mar é o grande esgoto onde são despejados os indesejáveis. Na Idade Média, navios desciam os rios recolhendo os loucos e os pestilentos de cada aldeia e cidade para morrer no mar. O mar é o inconsciente e joga-se no mar os dejetos rejeitados pelo Céu e pela Terra.
A filha do meio – a escritora da família – tem um conto fantástico sobre episódio real: “No momento em que escrevemos, um iate luxuoso percorre os oceanos do globo. Traz bandeira que não é de país conhecido ou desconhecido. Tem a bordo um certo número de guardas armados pois muitas vezes tentaram arrombar o cofre-forte do capitão. Esse cofre-forte contém um livro perigoso cuja leitura torna louco quem o lê e se chama Excalibur”. Em “Livros Malditos”, Jacques Bergier fala de Ron Hubbard, criador da Dianética e da Cientologia, que inspirou este conto.
Hubbard tinha lembranças de uma grande “civilização galáctica” da qual dizia que somos uma colônia perdida. Reuniu estas lembranças num livro que chamou de Excalibur e o deu a ler a alguns voluntários. Todos ficaram loucos e a informação que se tem é de que continuam internados. Charles Manson – assassino de Sharon Tate – um cientólogo declarado, continua preso. Hubbard, desde então, navega com seu livro maldito e não se sabe se já morreu. Até livros podem ser netunianos.
Não adianta querer transportar Miami para o reino de Netuno porque em pouco tempo o sonho americano será helenizado: o que bóia sobre as águas corre o risco de sair do real e virar tragédia grega.
Não há “happy end” no território deste deus, há terror e compaixão para provocar a catarse e catarse quer dizer purificação, purgação. Netuno é o deus das vísceras, o que vira as entranhas pelo avesso.
E que, às vezes, até arrisca um ou outro gesto de humor. Como naquela manhã surreal e inesquecível – em que o Solana Star desovou no mar latas de maconha do tamanho de latas de Neston, para se livrar do flagrante, e o louco deus as fez boiar e depositou na areia para o Carnaval da moçada, onde milhares de jovens as recolheram diante de impotentes e estarrecidos policiais. Fellini não faria melhor.
Ou a intoxicação-geral do navio inglês, num tragicômico processo catártico – ou purgativo -, condenado a vagar sem porto que o abrigue, transformando a erudita viagem pela civilização minóica num literal cruzeiro de merda.

Leave a Reply