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Nos tempos do Imperador Amarelo, numa aldeia às margens do Rio Lo, nasceu a pequena Ch’ien-Li, prematura e muito amarela, mesmo se comparada à sua gente, ou ao próprio Imperador.

Temendo pela vida de seu bebê, a boa Sun- K’an implorou ao marido que fosse consultar o santo-sábio K’en-Tsé, que vivia isolado na Montanha do Oeste e dominava o Oráculo das Mutações.

O Sr. Ch’en teve que empreender, em pleno inverno, a árdua peregrinação até a morada do eremita. Lá chegando, foi recebido sem surpresa por um ancião que sorria muito com poucos dentes, e nada dizia.

Após ouvir o relato do homem, o sábio levantou-se e buscou lá dentro da cabana um grande casco de tartaruga, que lançou ao fogo. Acompanhou com estreitos olhos e grandes orelhas atentas cada menor estalo, cada transformação provocada pelo calor, cada rachadura que se abria. Assim ficou toda a noite, em desperta contemplação, até a fogueira se apagar, quando os primeiros raios púrpura já despontavam no oriente.

K’en-Tsé então examinou a carapaça carbonizada para decifrar sua escrita.
Aos primeiros sinais, levantou a sobrancelha esquerda, deixando o Sr. Ch’en em grande agonia. Parecendo não crer no que lia, foi buscar suas varetas de caule de milefólio. Após longuíssimo ritual – suplício eterno para um pai ansioso – o sábio ergueu por fim a sobrancelha direita.

E foi assim, com todas as muitas pregas de sua venerável fisionomia puxadas para cima pela admiração, que ele vaticinou:

– Não morre tão cedo, mas seu destino é muito incomum. Trará desgosto e humilhação à família. Tempos depois, virá um grande sábio do Leste para transformar em bem todo o mal que ela há de provocar.

E mais não disse.

O Sr. Ch’en ficou desolado. Desgosto e humilhação para a família? Ele não merecia isso, cumpria todos os ritos e oferecia, apesar de suas poucas posses, generosos sacrifícios aos deuses e aos antepassados!… Mesmo sabendo que viria o tal sábio ao final, isso não parecia muito animador, uma vez que o estrago já estaria feito.

O pobre homem virou-se, cabisbaixo, e tomou o caminho para descer a montanha. O Mestre chamou-o ainda e entregou-lhe um pequeno disco de jade polido, vazado ao centro, preso num fio de lã vermelha. Disse que amarrasse ao pescoço da menina, para firmar seu destino.

A descida, pela aflição que o acometia, pareceu ao Sr. Ch’en ainda mais penosa que a subida. Ele estava intrigado: afinal de contas, o que é que aquela garotinha poderia fazer de tão grave?

Ah, pensou ele, corando, deve ser daquelas que têm a …porta-de-jade…em chamas! Então era esse o significado do amuleto, uma proteção contra a luxúria… ele tivera uma prima-bisavó assim, e as mulheres de sua família levaram 3 gerações pra se livrar da má-fama e voltar a conseguir bons casamentos. Algumas pessoas antigas da aldeia ainda lembravam das histórias de K’un-Tui, a bela, a louca, a destruidora de lares, que surpreendia os homens nas plantações e os deitava ali mesmo, para que satisfizessem seus exuberantes e insaciáveis desejos. Os homens já não conseguiam mais trabalhar, à espera de suas visitas intermitentes. Houve fome e escassez naqueles anos, e um alto consumo de vinho de arroz. As leis diluíram-se, os clãs foram ameaçados pelo desregramento da volúpia. Até que algumas senhoras de família perderam a linha e a tocaiaram numa noite de lua cheia. É o que dizem. Seu corpo de deusa nunca foi encontrado.

Tais eram os terrores que assombravam o Sr. Ch’en quando chegou em casa e deu com a pequena lombriga amarela, enrolada em pobres panos. Mesmo custando a crer que tão triste figura pudesse um dia vir a provocar tal celeuma, não ousou duvidar das palavras do Mestre K’en, e pôs-lhe o talismã no pescoço. Depois de relatar à esposa o que ouvira na montanha, o Sr. Ch’en retirou-se a um canto, pensativo, deixando-a a chorar copiosamente, debruçada sobre a garotinha que, em seu colo, dormia.
Pela manhã, o Sr. Ch’en comunicou sua decisão:

– Não amarraremos seus pés!

Sun-K’an esboçou uma reação mas, pensando bem, assentiu. Acreditava-se que o estiramento muscular provocado pela deformação dos pés tornasse a mulher mais satisfatória do ponto de vista sexual. Pés bem pequenos e torcidos indicavam feminilidade, e eram atraentes aos olhos masculinos. Não amarrar os pés de uma menina era quase uma condenação ao insucesso na corrida matrimonial mas, diante da perspectiva da desonra, esta parecia uma boa alternativa, uma indução ao recato.

Assim cresceu Ch’ien-Li, com seus enormes e estranhíssimos pés normais.
Talvez por força do amuleto, ou pela excessiva soltura dos pés, ou talvez pelas dificuldades do parto prematuro – foi o que pensou sua mãe, ao tentar encontrar uma explicação – Ch’ien-Li aderiu sem dificuldades a uma vida casta, mas revelou-se um tanto incapaz: simplesmente não aprendia as coisas como as outras crianças. Até os cinco anos, foi de uma mudez constrangedora, não ensaiava nem o tatibitate.
Quando rompeu o silêncio, saiu-se logo com esta:

– Por que o céu?

Passado o espanto, todos caíram na gargalhada. Nunca tinham ouvido nada tão estúpido e sem sentido. Esta foi apenas a primeira de longa série de tolices; ela não parou mais de fazer perguntas idiotas, uma atrás da outra. Queria saber do cego “é bonito aí dentro?” e do velho ‘quanto tempo falta pra você ficar novo outra vez?”. Sua mãe não sabia onde enfiar a cara.

As risadas foram dando lugar à censura, quando ela já não tinha idade de ser tão parva. Na adolescência, tornou-se retraída. Quando começou a fazer perguntas embaraçosas sobre o próprio corpo, sua mãe mandou pensar mais e falar menos. Ela procurou seguir o conselho materno mas, às vezes, deixava escapar alguma. Uma vez, durante os importantes preparativos para a festa de ano novo, ao adornar o altar dos Sábios Veneráveis, perguntou em alto e bom som:

– Por que as mulheres sábias não estão no altar?

Sua mãe apressou-se em repreendê-la pela blasfêmia, onde já se viu colocar mulheres junto aos Veneráveis? Mas o mal estava feito. À hora da festa, toda a aldeia já sabia da ignorância de Ch’ien-Li, que desconhecia as diferenças entre homem e mulher. Tal confusão revelou-se novamente em sua infeliz resposta a um improvável pedido de casamento.

Lá pelos 14 anos, contrariando as expectativas, Ch’ien-Li atraiu a atenção de um bom rapaz, que quis casar-se com ela, a despeito de seus modos estranhos e seus pés compridos. Seguindo os costumes, dirigiu-se primeiro aos pais dela, que estavam a um passo de esquecer a agourenta profecia. Tendo obtido permissão, foi perguntar à jovem se aceitava desposá-lo. Ao que ela, na falta de uma certeza, respondeu com a pergunta:

– Se você fosse eu, e um rapaz assim como você lhe pedisse em casamento, o que diria?

O rapaz não entendeu muito bem mas, na dúvida, ficou ofendido. Como é que ele, sendo homem, poderia ser cortejado por outro homem, ainda que fosse ele mesmo? Calou um silêncio magoado e foi-se embora sem oficializar o contrato. Ch’ien-Li suspirou, talvez aliviada.
E assim perdeu sua única oportunidade de viver uma vida normal.

Tendo ficado solteira e sendo, portanto, um fardo, procurava ajudar em casa e dar pouca despesa, mas percebia a decepção que causava a seus pais o fato dela ser assim como era.
Um dia perguntou ao pai:

– Por que não me amarraram os pés?

O pai, que já andava exasperado e voltara a pensar no oráculo, desabafou:

– Para que você não arruinasse a família. Mas em vez de luxúria, acometeu-lhe a estupidez crônica, o que vai nos levar para o mesmo buraco… não adianta lutar contra o destino!

Ch’ien-Li viu o pai chorar pela primeira vez.
Depois desse dia, não foi mais vista; simplesmente desapareceu. Sua mãe adoeceu, seu pai arrependeu-se amargamente de suas palavras mas, com o tempo, conformaram-se, e a verdade é que a vida correu mais tranqüila desde então.
Somente muitos anos mais tarde, já perto de morrer, Sun- K’an voltou a mencionar o nome da filha:

– Jamais poderei perdoar o que você disse a Ch’ien-Li.

O Sr. Ch’en defendeu-se como soube:

– Você é que não conseguiu fazer dela uma menina como as outras. As mulheres de sua família, aliás, sempre foram meio esquisitas, minha mãe bem que avisou!

– Olha quem fala, bisneto da tarada-do-arrozal…

– Bisneto, não; ela era prima da minha bisavó! Prima longe!

…e assim acabou a paz fria e muda que reinara naquela casa, desde a partida de Ch’ien-Li.

Mais ou menos por essa época, espalhou-se a notícia de que um grande sábio – um Venerável Mestre da Luminosa Senda do Vazio Perfeito – se aproximava da aldeia pela estrada do Leste. Sun-K’an foi com grande alegria contar a boa nova ao marido, e até esqueceu que andavam de mal.
O Sr. Ch’en imediatamente recordou-se das palavras do eremita, e compreendeu que a ajuda prometida estava a caminho, para consertar os estragos causados por sua filha.

O ilustre peregrino afinal chegou, e o Sr. e a Sra. Ch’en foram ter com ele, que já estava cercado por uma penca de aldeões. Mas o tal velho, ao que parece, era mudo ou não gostava de falar. Após escutar uma pessoa, rabiscava alguns ideogramas num papel e os entregava em silêncio. Mal se lhe via o rosto, sombreado por grande capuz de onde projetavam-se a barbicha e os bigodes em três tufos brancos, longos e bem aparados nas pontas. Sua figura pequena era quase cômica, andava descalço e em andrajos. Contudo suas enigmáticas mensagens, geralmente interrogativas, embora estranhas à primeira vista, levavam as pessoas a reflexões transformadoras.

Os dois velhos mal agüentaram esperar muitas horas por sua vez. Quase pela manhã, já exaustos, puderam enfim contar ao sábio, entre lágrimas, seu drama com a filha desaparecida. Receberam estas palavras numa folha de grosseiro papel de arroz:

– Como podem lamentar a sorte de quem vive na abundância de sua esplêndida morada?

Os velhos abraçaram-se, exultantes. Aquilo parecia querer dizer que sua filha encontrara um bom lar, um marido. Teria filhos crescidos, quiçá netos, na aldeia vizinha. E pelo visto, se o velho não exagerava, era muito rica.

No dia seguinte o Sr. Ch’en quis ver o sábio novamente, para saber se interpretara corretamente suas nobres palavras, mas este havia partido antes mesmo do amanhecer. Na pressa tinha esquecido sua bagagem, uma modesta trouxa com poucos pertences.
Os aldeões resolveram – após rápida e unânime votação – abrir a sacola, onde encontraram apenas uma caixinha contendo cola de arroz e 3 longos chumaços brancos e muito bem aparados de pelo de cabra, embrulhados em papel grosseiro onde se lia, numa fileira de intrincados rabiscos:

– Qual a diferença entre uma idiota e um sábio?

Foi uma criança que encontrou, no fundinho da bolsa, o amuleto de jade, amarrado no que restava de um fiapo de lã vermelha, embrulhado num pedaço de papel contendo a resposta do enigma do Mestre, ou melhor, de C’hien Li:

A diferença entre um idiota e um sábio é que um sábio sabe que é idiota, e um idiota pensa que é sábio.

Depois desse dia, Ch’ien-Li nunca mais voltou. Ainda assim, seus pais puderam morrer felizes: a imagem da filha, sem rosto sob um capuz, adornada pelo disco vazado – símbolo do oco, do fecundo, da plenitude, do vazio, da mulher, da concubina, dos loucos e dos santos – foi entronizada com grande pompa no altar dos Sábios Veneráveis.

Todos da sua família, até primos distantes, passaram a gozar de excelente estima social na aldeia por muitas e muitas gerações.

 

* * *

2 Responses to “A Luminosa Senda do Vazio Perfeito”

  1. Lundo! Espero que você de textos como esse à luz com mais frequência!

  2. Camille says:

    Amei seu conto. Quanta imaginação e lirismo juntos! Quanta informação sobre a China!
    Muito lindo mesmo, e acho que minha filha tb vai gostar.
    Um beijo,
    Cam ( do FB)

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