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A vida avilta a arte

Só posso dizer uma coisa: se esta história tivesse sido escrita por mim, teria um desfecho muito diferente. Certas coisas, de tão absurdas, jamais caberiam na ficção.
A Dê deve ter sido uma das dez meninas mais bonitas do Rio de Janeiro. Mas, ainda que as outras nove estivessem a seu lado, Zib não as teria visto. Porque olhar para a Dê teve o efeito de apagar as milhões de estrelas e o céu virou um fundo escuro infinito para a passagem meteórica daqueles olhos de água-marinha na pele dourada de uma sereia. Conheceram-se na fila do Planetário e, quando ela sorriu, Zib teve certeza de que, dentre todos os corpos em órbita no tempo e no espaço, aquele rastro luminoso era o que faria sua trajetória fazer a curva sobre si mesma. Ele tinha apenas 17 anos, mas sempre teve essa determinação extraordinária e resolveu ali mesmo que aquela era a mulher com quem ele iria se casar.
A Dê ainda era muito jovem pra ter tanta certeza e a bem da verdade ela tinha um namorado então nem ao menos ficaram juntos nessa época. Mas o Zib era mesmo um sol e ela não deixou de perceber que a luz caiu quando ele viajou. Ele foi morar nos Estados Unidos mas não esqueceu a Dê, escrevia toda semana, acenava com oportunidades de estudo e trabalho para ela.
A vidinha dela continuava boa, faculdade e coisa e tal mas o que ninguém sabia ainda é que, com uma ajudinha do espírito empreendedor do Zib, a Dê tinha se tornado uma das dez meninas mais corajosas do planeta. Ele mal pôde acreditar quando ela resolveu aceitar um estágio ou coisa que o valha e se mandou pra lá, de mala e cuia. Então eles acabaram ficando juntos, claro, e foi lindo. Passaram por momentos maravilhosos e inesquecíveis e também por maus bocados e mesmo isso pôde ser gostoso e divertido todo o tempo. As luzes transbordavam de seus olhos mais que o frio, a dureza, as distâncias.
A volta ao Brasil seria uma prova e tanto. O Zib era judeu, a Dê não era. A família dele não gostou do namoro, e a família dela não gostou (com razão) de alguém se dar à desfaçatez de não gostar de sua princesa – luminosa, brilhante, bem-educada, uma jóia rara em qualquer contexto.
Casaram-se lá, romanticamente e em segredo. Fizeram juras um ao outro, um casal de amigos por testemunhas e isso valeu mais para eles do que as bênçãos de sete gerações.
Na volta enfrentaram novamente com amor e graça as dificuldades. As famílias espernearam em vão, depois cansaram. Depois aceitaram e por fim esqueceram essas pequenezas, sobretudo quando veio o bebê. Um anjo ruivo de parar o trânsito no colo da mãe mais linda com olhos de água-marinha, emoldurados pelo amor solar do pai. E depois veio outro anjo, moreno como a mãe para ressaltar olhos azuis profundos de safira. A mais iridescente representação de uma família harmoniosa, saudável, feliz.
Então Dê e Zib souberam desfrutar de sua felicidade. Viajaram muito, conheceram lugares lindos e exóticos, espalharam seus sorrisos pelos 4 cantos, por entre toda a gente que teve a sorte de se contagiar dessa alegria generosa. Dava gosto de ver. Aproveitaram seus dias pacífica e amorosamente, correram atrás de seus objetivos, amaram os filhos e eram aquele exemplo a ser pinçado em momentos de desesperança, quando a vida parece um lugar inviável. Podíamos sempre pensar: vejam a Dê e o Zib, eles são do bem e se deram bem, são felizes. E deveria ser assim para sempre, até morrerem velhinhos, de preferência dormindo um nos braços do outro, durante um cruzeiro na Nova Zelândia. Esse é, sem dúvida, o final que eu escreveria para eles.
Soube ontem por um anúncio no obituário do jornal: Zib foi assassinado há pouco menos de um mês, aos 40 anos, num cruzamento da cidade, numa tentativa de assalto ou sequestro-relâmpago. Os bandidos, covardes, não levaram nem o carro, deixaram dinheiro, chaves, tudo ali, junto com o corpo inerte, já sem o sol que o animava.
Levaram a luz dos olhos da Dê, a alegria segura de um par de anjos e um bom pedaço da minha fé na vida.
O mundo ficou mais escuro e eu não tenho uma palavra de água-marinha pra mandar para o Zib lá do outro lado, nem uma palavra de sol pra aquecer a Dê por aqui.
A vida é tão brutal que não há palavras. Quando encontrar minha amiga, vou abraçá-la em silêncio, em meio a uma constrangedora fila de pêsames. Quem foi que inventou os ritos fúnebres? Deve ter sido o mesmo espírito-de-porco que tem escrito a História. Perdoe a sinceridade, seja Deus ou quem for, mas eu não estou achando a menor graça neste enredo.

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